Sonhei amor
Que já não havia vida
Que essa pátria mãe toda fodida
Era lixo e destruição
Sonhei amor
Que a paz tinha perdido a guerra
Que a morte nem sempre te espera
Vivíamos na solidão
Sonhei amor
Te perdia na segunda aurora
Não podia mais contar as horas
Não tocavam mais nossa canção
Sonhei amor
Que entravam em meu apartamento
Me apagavam todo o pensamento
Me batiam jogado no chão
Acorda amor
Por ironia ou por brincadeira
Eu morri nessa sexta-feira
Será que tranquei bem o portão?
(E E7 E Am)
Queria saber
A vida parece não ter valor
Queria poder
Deixar de sentir tanto ódio e rancor
(G F E E7)
Será que tudo pode ser pior?
Sufocado pelo seu olhar
[“Gostarias de ser compreendido? Era só o que faltava! Compreende a ti mesmo e então está suficientemente compreendido.” (C.G. Jung)]
(E E7 E Am)
Quem sabe um dia
A vela apaga, não há mais luz
Me angustia
Preso na tela que me seduz
(G F E E7)
Não sei se posso mais sonhar
Não tenho forças mais pra lutar
Minha alma deixa de penar
As telas me roubam o olhar
[“Filhos pequenos querem ser compreendidos. Compreende a ti mesmo! Essa é a melhor proteção contra a irritabilidade e ela saciará seu desejo infantil.” (C.G. Jung)]
(E E7 E Am)
Me aliena
Um coração sem a quem pulsar
Não crie problemas
Calado ninguém vai te encontrar
(G F E E7)
Será que tudo vai ser pior?
Sufocado pelo seu olhar
Não sei se posso mais sonhar
Não tenho forças mais pra lutar.
[“Queres novamente transformar outras pessoas em escravos de tua cobiça? Mas sabes que eu devo viver contigo e que não vou mais tolerar em ti semelhante estado deplorável!” (C. G. Jung)]
(E Am) F E E7
Todos os dias
Até a morte
Tentam te deixar pra baixo
Se está feliz, te entristecem
Cada vez mais se adoece
Em casa, na escola ou trabalho
Só querem os que mais produzem
Enquanto isso seduzem
Com sexo, bebidas e noticiários
Um escravo de agrado
Um escravo de agrado (uh uh)
Um escravo de agrado
Entupido de sonhos torpes
Te vendem a sua própria sorte
Esse é o contrato assinado
Um escravo de agrado
Um escravo de agrado
Seja um exemplo, garoto
Bom de serviço, tranquilo, disposto
Não importa se está esgotado
Um escravo de agrado
Um escravo de agrado (uh uh)
Um escravo de agrado
Bm C
Ilusões de poder
F E
Te vendem pra você
(E Am) F E E7
O seu mais novo fracasso
Seu magnífico ego inflado
Renuncia todos os pecados
Um escravo de agrado
Um escravo de agrado
Um ateu que também é crente
Dogmas e verdades latentes
Família, amigos, empregados
Em meio às redes, vazio ao seu lado
Um escravo de agrado
Um escravo de agrado
Bm D
Reconhecer-se, de fato,
F E
Um escravo
(E Am) F E E7
Respire e siga em frente
Deixe que o tempo se assente
Acene e dê bom dia
Levante a cabeça, sorria
Você está sendo filmado
Um escravo de agrado (uh uh)
Um escravo de agrado
Cancelado.
(Am C)
Muito do que escrevo não sou eu
Mas ainda assim
De onde isso saiu?
Quem foi que isso escreveu?
O que ficou, o que não há, o que partiu?
(Am C)
Talvez quem me conhece bem
Possa distinguir em textos meus
O que está em mim e está além
Longe do que de fato aconteceu
(E F)
Estou também ali
Dialogando com outras partes do meu eu
Entre os nãos e o sins
Mesmo que seja o que se esqueceu
(Am C)
Muito do que escrevo não sou eu
Mas será que ainda estou ali?
Observando nas palavras erros meus
O que sonhei, o que pensei, o que senti
(Am C)
Vivendo nesse cósmico devir
Perto do abismo de onde eu vim
Imaginando na luz cega do breu
Tudo o que um dia eu assisti
(E F)
Mas não permaneceu
Jogado ao fluxo se perdeu
Sem início, meio ou fim
Num instante desmorona todo o céu
Tudo o que escrevo não sou eu
Nada!
(Am C)
A poesia serve
Pra mostrar
Que nem tudo
No mundo
Precisa servir
Pra alguma coisa
Ou alguém
Assim
A poesia é livre
Libertária
Insubordinada
Por isso é perigosa
Ajuda a desamarrar
A gente
Da prisão funcional
Instituída
Cotidiana
De ter que na vida
Servir alguém
Ou (pra) alguma coisa.
(E C)
Hoje eu acordei
De sonhos intranquilos
Agora eu sei
Que não havia gritos
Mas gemidos
Que me silenciavam
Gemidos
Que me apavoravam
Hoje eu acordei
Sem muito o que dizer
Nem te chamei
Não quero te ver sofrer
Nesses vícios
Já me habituei
Vícios
Ainda não larguei
Hoje eu acordei
Pensando em me divertir
Pois já nem sei
Por quanto irei sorrir
Nessa vida
Que pode se acabar
Vida
Quero te experimentar
Hoje eu acordei
E enfim me sinto vivo
Tudo que chorei
Me diz que eu existo
Agora
Já me recuperei
Agora
Juro que tentei
Hoje eu acordei
E quando abri os olhos
Eu me liguei
Que havia outros sonhos
A me olhar
Só via pesadelo
Olhar
Pro sol me dava medo
Hoje eu acordei…
about
Os volumes do álbum “Pesadelo” (2022) foram gravados, mixados e produzidos pelo smartphone no calor seco do cerrado brasileiro e se referem ao horror, ao inquietante, as sombras, a escuridão, tanto interna quanto externa. Tanto metafórica quanto literal. Tanto onírica quanto em vigília. Tanto pessoal quanto social.
Cada volume traz 6 faixas com temáticas, conceitos e poéticas onírico-filosóficas inseridas no universo narrativo ficcional transmídia de “MekHanTropia”. A obra conta com participações especiais diversas e inserções de cantos, filmes, ambientações e mantras incidentais.
Os títulos “Succubus” e “Incubus” são denominações atribuídas a demônios sexuais oníricos sugadores de energia, que assombram inconscientes psicobinários mekHanTrópicos, regulando as subjetividades dos indivíduos (bovíduos) deste universo.
Pelos sonhos, o sistema de MekHanTropia acessa e lucra sobre os desejos mais profundos de cada um e, assim, imputa suas narrativas mekhantrópicas. O controle psicobinário é instituído alterando o pensamento dos agora bovíduos mekhantropomorfizados. O malware h6n66 recodificou as relações planetárias e alterou a composição daquilo que se chamava de “humano”, criando uma horda demoníaca de zumbis tecnocratas milicianos acríticos que instituem pesadelos.
Essa horda foi batizada como “HumanCron” – em homenagem as variantes virais que foram catalogadas na época do “Amanhecer mekhantrópico” –, e são lideradas pelo déspota necropolítico conhecido como “O Messias Genocida”. A horda tem a incumbência de gerar pesadelos algorítmicos em quem tenta “despertar”. “Succubus” e “Incubus” são os demônios nobres de alta patente dessa horda, a serviço do Genocida. Pelos sonhos, eles sugam a energia vital e prendem os resistentes em seus pesadelos mekhantrópicos.
O álbum “Pesadelo” funciona como uma distopia imersa nas entranhas daquilo que é visível na utopia mekHanTrópica. Falo sobre o vazio PÓStumo nessa relação entre as realidades mekHanTrópicas projetadas como ilusões aos sentidos. Vazio este que se encurta cada vez mais no hiperfluxo hiperinformacional. Penso que as máquinas podem criar âncoras na gente (e geralmente é o que acontece em função do sistema da hiperprodutividade), mas também podem soltar a imaginação. O problema talvez esteja nas maneiras como as máquinas estão sendo usadas e fruídas nesse universo, gerando distúrbios materializados enquanto pesadelos aqui.
À luz de Byung-Chul Han, em sua “Filosofia do Zen Budismo” (2020), num movimento de des-apropriação de tudo que se coloca como “o que é”. Rastros in-significantes. Pinceladas de ausência. Como se o vazio fosse entendido enquanto um meio de afabilidade entre as imagens que passam umas nas outras constantemente. Imagens cada vez mais aceleradas pelas máquinas mekHanTrópicas. Um desprendimento intenso entre a ausência e a presença, entre Ser e não Ser, sem expressar nada em essência. Nada urge, nada se limita, nada se fecha, e ao mesmo tempo tudo se aconchega e se espelha no fluxo binário delirante ilusoriamente indolor. A dor é inerente e, talvez, a causa maior dos medos, egoísmos e, substancialmente, dos pesadelos. Não adianta querer que as coisas sejam imóveis e imutáveis…nem na morte elas são. Não temos esse domínio ilusório. Acha-se que temos o poder de domínio sobre o Caos…doce ilusão…é por isso que cada momento é importante, pois nunca sabemos o que acontecerá no momento a seguir.
Cada vez presta-se menos atenção aos momentos. Na possibilidade e na probabilidade de viver está presente muita dor e sofrimento (utilizados como estratégia de cooptação pela anestesia), mas também afetos, amor e alegrias presas nos instantes cada vez mais curtos e fugazes aniquilados pelo hiperfluxo e hipercompetição. Instantes mágicos que se diluem sem pausa nas telas do mundo 24/7. Mas na morte, a princípio, não há dor, então esse álbum não fala sobre a morte, mas sobre a vida, em essência.
As faixas falam sobre o autoconhecimento e o olhar voltado para dentro, para a própria escuridão, vasculhando os resquícios de elementos culturais que vem de fora e tentando se libertar de estigmas amalgamados ao espírito aniquilando a potência do ser, abraçando a escuridão e integrando-a como parte de si, desassociada do olhar e do julgamento do “outro”, algo cada vez mais complicado de ser feito nos tempos mekHanTrópicos instituídos de hipercomparação.
Verso sobre elementos que envolvem a existência, como o tempo, os espaços, os pensamentos, a vida, a morte, os sonhos, o envelhecimento, a juventude, o movimento, o caos, o ódio, a dor, o sofrimento, o amor, os afetos, entre outros aspectos. Estamos cada vez mais dispersos de afetos e cheios de polarizações. Imersos na pós-verdade instituída, cuja resposta é binária como a linguagem em “0” e “1” de computadores, aniquila-se nuances de transcendências típicas da essência social e animal do ser humano.
Uma possível válvula de escape para resistir a isso seria transfigurar experiências e acessar dimensões “transbinárias” da vida, em um equilíbrio entre o racional, o empírico e o emocional. Pela arte pode-se tentar, subjetivamente, romper tais bolhas padronizantes. Talvez por isso ela seja vista como uma ameaça (ao lado da ciência e da educação), uma vez que provoca disrupções ao olhar padronizado pelo consumo.
Busco pelo conceito de “transbinarismo”, à luz do pensamento de Edgar Franco (2021, p. 09-14), para refletir sobre possíveis saídas ao maniqueísmo intolerante e limitante que as redes podem provocar sobre os indivíduos (e, consequentemente, na sociedade), com intenções torpes de afastamento e consumo egóico.
Ao percorrer minhas zonas cinzas como autor dessas faixas, acesso arquétipos e toco diversidades de perspectivas, ampliando meu olhar sobre o outro e, consequentemente, minha empatia de forma mágicka, caótica, inconsciente. Além disso, é importante o contato com as sombras (JUNG, 2015), no intuito de integrá-las e compreendê-las como parte integrada, e não como algo externo a mim. Tais relações referentes ao autoconhecimento e autotransmutação são aqui cruciais, tendo em vista o acesso pela obra a questões minhas alocadas na obscuridade.
Trato, sobretudo, a respeito das complexidades humanas numa era de polarizações, onde esquece-se das nuances complexas presentes em todos os seres e evidencia-se os julgamentos e determinações maniqueístas totalitárias que o sistema coloca.
Vivemos uma era de pessoas tristes, presas em suas próprias telas e cheias de verdades absolutas. O pensamento crítico se torna raso em meio ao hiperfluxo de informação. Muda-se a percepção sobre o que é diferente, influenciando a atenção sobre a complexidade do outro, assim como do “si-mesmo”. Assim, aspectos típicos da psique humana são induzidos à negação (como as sombras, por exemplo), em uma estratégia de anulação de negatividades, o que gera ressentimento, ansiedade, intolerância, competitividade, entre outras consequências na sociedade. Por medo, por preguiça ou por falta de um tempo que nos escorre pelas mãos, deixamos de sonhar. E isso é grave, já que afeta nossos afetos.
A arte é um importante meio capaz de trazer representações de momentos sinceros, únicos, qualificados, qualitativos, materializados, aproveitados com intensidade rica e visionária, no prazer vivo da aura, do espírito, da potência, da vontade, do que toca e é tocado, transitando poeticamente pelas entranhas do analógico e do digital. A arte possibilita trafegar pela diversidade das “zonas cinzas” que o binarismo insiste em aniquilar enquanto terceiro elemento dessa tríade essencial ao pensamento. Quem sabe assim, a partir de diversas consciências coincidindo-se nesses contatos, gerar-se-ão mudanças nos hábitos e estilos de vida destrutivos solidificados.
Vislumbro na arte, na ciência e na educação os grandes pilares de transformação cultural. A configuração onírica e a expansão transmidiática do universo ficcional de MekHanTropia como transgressão contracultural, no sentido prático e lúdico do “pensar” e “juntar”, em combate à presente monocultura do sentir, amalgamada à hiperespecialização tóxica instituída a serviço do mercado.
Proponho aqui uma espécie de transbinarismo folclórico, híbrido e reverso, contra o conformismo linear teleológico maniqueísta digital. Talvez no âmago do que há de mais humano estejam as narrativas, uma vez que emulam vidas transbordando-as, e a transmídia, especialmente nesse sentido, ajuda a expandir ainda mais a representação dessa complexidade fragmentada.
Referências:
FRANCO, Edgar (a.k.a. Ciberpajé). Renovaceno. Brasil: Editora Merda na Mão, 2021.
HAN, Byung-Chul. Agonia do Eros. Petrópolis: Vozes, 2017.
HAN, Byung-Chul. No enxame – perspectivas do digital. Petrópolis: Vozes, 2018.
JUNG, Carl Gustav. Sobre sentimentos e a sombra: sessões de perguntas de Winterthur. Trad. Lorena Richter. 2ª ed. Petrópolis (RJ): Vozes, 2015.
JUNG, C.G. O Livro Vermelho (Liber Novus): edição sem ilustrações. 4ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.
Canto incidental na faixa “Sangue Derramado”: áudio extraído de um vídeo que está no YouTube com o indigenista Bruno Pereira cantando ao lado de indígenas da etnia Marubo a canção “Kanamari”. Segundo Eliésio Marubo, da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari, a canção conta a história do cuidado de uma arara com seu filhote. Fiz essa música como uma homenagem aos povos indígenas e a todes que atuam em movimentos de resistência contra a necropolítica genocida instituída no Brasil. Pela diversidade, pela cultura, pela arte, pela vida e pela esperança de tempos melhores.
Meu profundo respeito aos povos indígenas, a Bruno, Dom, seus familiares e amigos e todes que sofreram e sofrem com governos de morte e destruição. Ao ver o vídeo do indigenista Bruno Pereira e os indígenas da etnia Marubo cantando, fiquei bastante emocionado com a beleza e força da canção. Além do canto de Bruno com os Marubo, a faixa traz também falas torpes do genocida sobre a perseguição de ativistas no Brasil em função do mercado, do boi, da bíblia e da bala. (Fonte:
fatoamazonico.com.br/feliz-e-rodeado-de-indios-da-etnia-marubo-bruno-pereira-aparece-em-video-cantando-no-meio-da-selva-amazonica/ ).
Ouça também a primeira parte do Pesadelo, o “(Volume 1) SUCCUBUS”, em:
MekHanTropia é um universo artístico transmídia experimental DIY de autotransformação do artista multimídia, doutor em Arte
e Cultura Visual (UFG), prof. de fotografia, artes e audiovisual, baixista das bandas Cicuta e Cão Breu, Fredé CF (Frederico Carvalho Felipe).
This compilation album features Peruvian artists from a cross-section of genres including experimental, shoe gaze, and indie rock. Bandcamp New & Notable Jul 3, 2020